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sábado, 12 de novembro de 2016

Augusto de Franco: democracia boçal, americana (mas não só ela)

Boçal

Uma análise da vitória de Trump no colégio eleitoral 
Augusto de Franco

Dagobah, n. 31, 12/11/2016


A eleição de Trump é mais uma consequência da dilapidação progressiva do capital social americano, já diagnosticada por pensadores como Robert Putnam (1995) em Bowling Alone: America's Declining Social Capital e Jane Jacobs (2004) em Dark Age Ahead. A progressiva dominância do governo central, a feição quase monárquica do presidencialismo americano, a ascensão do chamado "complexo industrial-militar" (sobretudo a partir do final do governo de Dwight Eisenhower) foram pontos de inflexão importantes nessa trajetória de centralização que, de certo modo, deturpou aquele surpreendente processo de constituição de um governo civilpercebido por Alexis de Tocqueville em 1835, quando escreveu o primeiro volume de A Democracia na América. Só muito tempo depois de Tocqueville, Jane Jacobs usinaria o conceito de capital social. Mas não importa, pois era disso que Tocqueville falava em meados do século 19. 

Sim, a democracia deve muito à experiência americana. E, por ironia, o enfreamento do processo de democratização nos Estados Unidos também é paradigmático. Para os democratas, a história americana revela o que fazer e o que não fazer. Assim como a formação da network da Filadélfia, que escreveu de forma distribuída (a várias mãos) a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (ratificada em 4 de julho de 1776) inaugurando uma nova realidade social capaz de suportar sua inédita reinvenção política, a eleição de Donald Trump parece indicar o ponto mais baixo dessa curva histórica de depressão da democracia americana. 

O agente é circunstancial. Mas, no caso, é significativo que a consequência tenha vindo por meio de um ator boçal: o milionário midiático Donald Trump. 

É claro que Trump não conseguirá fazer boa parte do que anunciou. Não vai fabricar nos USA o que é fabricado na China e em outros países asiáticos, trazendo as empresas americanas de volta para o solo pátrio. Não vai construir um muro total, separando os USA do México, nem tratar os mexicanos como potenciais delinquentes e estupradores. Não vai deportar em massa os cerca de 11 milhões de imigrantes ilegais. Não vai legalizar procedimentos de tortura (como o afogamento) como método de interrogatório (ainda que isso vá continuar acontecendo clandestinamente). Não vai conseguir tornar hegemônica a narrativa maligna de que o mundo seria melhor se ditadores corruptos e assassinos como Sadan Hussein e Muamar Gadafi estivessem no poder. Não vai fazer a maioria das pessoas achar aceitável abandonar o povo sírio nas mãos da dupla genocida Assad-Putin. E não vai bipolarizar o mundo novamente (num jogo de cartas marcadas com o ditador Putin, a despeito dos elogios mútuos trocados pela dupla sinistra durante a campanha), reeditando a política de blocos e a guerra-fria dos anos 1945-1991 (ainda que muitos autocratas nativos, como Olavo de Carvalho, avaliem que isso seria desejável como prevenção contra uma guerra-quente). 

E também é claro que o bufão será domesticado pelo establishment, que não se resume ao sistema partidário, mas envolve profundos interesses de um "complexo pós-industrial-militar", das elites políticas e econômicas enraizadas em estados (que já funcionam mais como sócios de uma grande corporação privada do que verdadeiros estados unidos pelo ideal da democracia e em prol da liberdade), da monstruosa comunidade de informação, segurança e defesa (que tem mais autonomia do que seria prudente - e aceitável por Estados de direito - em relação aos representantes eleitos), da mídia broadcasting (mais comprometida do que se pensa com a "corporação" público-privada) e até da suprema corte (idem). Isso tudo e mais um pouco compõe o chamado "sistema". 

O sistema - pelas razões que serão expostas mais adiante - tornou-se inadequado para apascentar os insatisfeitos, que lhe mandaram então um recado nestas eleições de novembro. Como observou, no caso corretamente, o delinquente político Michael Moore

"to stick to all of them, all who wrecked their American Dream! And now The Outsider, Donald Trump, has arrived to clean house! You don't have to agree with him! You don't even have to like him! He is your personal Molotov cocktail to throw right into the center of the bastards who did this to you! Send a message! Trump is your messenger!" 

Sim, é óbvio que esse sistema se tornou inadequado para operar a domesticação das pessoas que quer controlar, mas não impotente em relação aos seus próprios operadores. Uma coisa é um candidato servir de mensageiro para um voto contra o sistema. Outra coisa é o sistema aceitar um presidente contra o sistema. Não vai acontecer. 

Dito isto, voltemos às razões da vitória trumpista no colégio eleitoral. A primeira pergunta é: quem mandou o recado? 

A eleição de Trump é uma resposta à crise dos chamados "perdedores" da globalização, que gostariam que o mundo permanecesse arrumado segundo a velha ordem ou ao imaginário estabelecido sobre uma memória falsificada: ah! antes era melhor: cada país no seu lugar, com o nosso país na frente, cada qual cuidando do seu próprio interesse, desde que o nosso esteja garantido (sem mexicanos tomando nossas vagas)... 

Não, não é apenas Trump que é boçal. Boçal mesmo é o modo-de-vida subordinado de boa parte dos seus eleitores. Entenda-se bem: os eleitores não são boçais (no sentido de que não saberiam votar para escolher o melhor), boçal é o modo-de-vida a que foram submetidos e que reproduzem, não vendo perspectivas a não ser a volta ao passado. É claro que o populismo nacionalista da "America First" de Trump se ajustou como uma luva à tal situação, como resposta à desesperança dos que não podem mais recuperar o status que tinham (ou que hoje imaginam que tiveram) na sociedade industrial do século 20. 

É um imaginário de escravos. Não foi um reclame típico de empreendedores e inovadores da Califórnia, de Vermont, de Massachusetts, de Maryland ou de Nova York e sim o de empregados de Ohio, Iowa, Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, de pessoas que se conformam em vender sua força de trabalho para realizar o sonho de alguém, seja qual for e seja de quem for, desde que tenham recursos para comprar e pagar suas contas de sorte a poder continuar a comer e beber, se abrigar, se divertir no pouco tempo livre que sobra aos escravos, acasalar, se reproduzir e morrer. Mutatis mutandis, foram as mesmas pessoas (no sentido de que foram os mesmos mundos sociais onde vivem - e são - essas pessoas) que aprovaram o "brexit", nas regiões industriais deprimidas de Midlands na Inglaterra: a desilusão dos novos escravos com o Partido Trabalhista inglês foi uma espécie de prévia do desencanto americano com Obama, sua candidata Hillary e, até, com Bernie Sanders. 

A segunda pergunta é: por que isso aconteceu? Não sendo possível paralisar a globalização, por que a democracia americana não conseguiu se aggiornar para acompanhar as mudanças? A vitória de Trump - tendo ele dito o que disse durante a campanha - revela que a política não conseguiu refazer suas congruências com um mundo que está longe de ser o mesmo da época dos founding fathers, de Wilson, de Truman, de Roosevelt, de Eisenhower e de Kennedy. 

Os males da globalização se resolvem com mais globalização, não com a fuga para trás, refugiando-se no velho localismo conservador (não-cosmopolita) do meio-oeste americano. O espírito comunitário que produziu uma quantidade espantosa de capital social nos USA só pode permanecer como glocalismo, posto que ocorre em uma era em que há a possibilidade de conexão local-global ou na qual o local conectado é o mundo tudo. Qualquer outro tipo de localismo - e o "America First" é um localismo - leva ao enfreamento do processo democrático e à recusa à sociedade-em-rede. Essa, aliás, foi a origem da Al Qaeda nas caciquias tradicionais da Arábia Saudita. Foi, como o trumpismo, um movimento anti-globi

As elites pós-industriais, sintonizadas com a globalização, não conseguiram estabelecer uma ligação com a retaguarda atrasada, composta pelos setores que não acompanharam a mudança. A fratura entre centro e periferia que se vê em todo lugar, em geral abordada em termos econômicos, também se reflete na esfera da política dentro de cada lugar, de cada país. O mundo mudou mais rápido do que o sistema político. O chamado "cinturão da ferrugem" (na Inglaterra, assim como nos USA e em várias partes do mundo) não se vê representado por esse velho sistema e votou contra ele. 

Aqui o mais importante para decifrar o que ocorreu. O mundo é novo, mas o sistema é velho. Ao votarem contra o velho sistema, desgraçadamente, os excluídos da globalização votaram contra o mundo novo e por isso seu movimento é regressivo. A culpa (se é que há alguma) não é de quem votou e sim de quem não conseguiu refratar politicamente uma nova realidade social. Assim, as elites políticas quer perderam a eleição, revelaram-se tão boçais quanto o trumpismo e tão boçais quanto o modo-de-vida anacrônico dos que aderiram ao trumpismo. 

Apenas um exemplo, dentre muitos que poderiam ser fornecidos. As regras do sistema eleitoral americano envelheceram. Ah! Mas elas não foram escritas ontem - diriam os conservadores. Não? Então, mais um motivo. Quem quer coisas perenes, que permanecem eternamente como foram, é o autocrata prototípico Gilgamesh, não a democracia. Na saga mesopotâmica, Gilgamesh, como se sabe, tentou alcançar a imortalidade, o que não lhe foi concedido pelos deuses (ou por aqueles seres horríveis, não-humanos, desumanos, genocidas, intrigantes e corruptos, que os sumérios consideravam como seres superiores e que, milênios depois, os gregos foram chamar de deuses). Na sua volta à realidade, Gilgamesh resolveu erigir edificações monumentais, pirâmides monstruosas - como o são qualquer templo ou palácio -, para perenizar num mundo morto, construído, aquilo que não havia conseguido alcançar no mundo vivo (e com-vivo), tentando se vingar do fluxo transformador que o faria pó em pouco tempo. 

Alguém vencer no voto popular e perder no colégio eleitoral é uma possibilidade admitida por uma regra que fazia sentido quando foi inventada, mas numa sociedade altamente interativa, que se transforma ao sabor do vertiginoso fluxo interativo da convivência social muito mais rapidamente do que as instituições do Estado, insistir em mantê-la só aumentará a defasagem entre a planície e o planalto (para usar uma metáfora brasileira, mas talvez não só... predadores e senhores surgiram como representantes do altíssimo e costumam aparecer nas alturas) e contribuirá para aumentar a crise do sistema representativo. 

O presidencialismo americano foi uma espécie de sucedâneo democrático mal-arranjado da monarquia. A revolução americana tinha de dar uma resposta que equiparasse seu moderno sistema representativo aos padrões civilizatórios da velha Europa. Mas isso passou. A necessidade de perenidade esvaneceu. As regras numa democracia são sempre transitórias. E os lugares são sempre vazios. Manter as regras arcaicas para preencher os lugares é uma operação mágico-sacerdotal de caráter autocrático, não democrático. As regras da democracia, reduzida a um modo de administração política do Estado-nação, podem conspirar contra o processo de democratização. É o que estamos vendo. 

Mesmo que Trump não consiga realizar o que prometeu - e mesmo que, por um conjunto de circunstâncias, acabe fazendo um governo não de todo detestável ou até razoável -, sua eleição, em si, foi prejudicial à democracia. Todas as explicações - inclusive as que foram expostas neste artigo - não podem apagar essa realidade.

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